Hóspede de um Dissidente [25-11-2010]

Reproduzo aqui a entrevista publicada no blog Dissidente e aproveito para agradecer o convite que me foi feito pelos seus animadores.




1. O que te levou a organizar este Seminário sobre as ideias e percursos das direitas portuguesas?


Quando há cinco anos atrás comecei a interessar-me de direitas portuguesas nas minhas investigações de doutoramento sobre as “direitas radicais”, procurei em primeiro lugar um instrumento bibliográfico que me proporcionasse uma panorâmica do tema geral na qual poder colocar, do ponto de vista histórico e ideológico, o tema específico das minhas investigações. Procurei e não encontrei. Ou seja, havia uma falha na bibliografia portuguesa. Essa ocupou-se (e ocupa-se) de períodos e acontecimentos históricos determinados ligados a esta ou aquela direita, mas nunca procurou (que eu saiba) desenhar uma genealogia de conjunto desta família política, pelo menos desde a formalização histórica das etiquetas de “direita” e “esquerda”. Desde então fiquei com a vontade de resolver este estímulo intelectual, mas ao longo dos anos de doutoramento e nos primeiros de pós-doutoramento nunca tive a oportunidade de o fazer. Finalmente decidi-me e fi-lo, por enquanto, em forma de conferência. Estou a trabalhar na organização pelo menos desde Fevereiro, pois quis reunir peritos de cada área específica das direitas que permitam desenhar um fil rouge desde o miguelismo contra-revolucionário até ao liberalismo dos nossos dias. Como é óbvio, não procuro uma lógica unívoca que conecte coerentemente tudo o que se moveu na direita em Portugal nos últimos 200 anos. Procuro sim identificar quais raízes afundam no terreno das ideias das direitas portuguesas e, a partir desta pluralidade, pretendo desvendar quais frutos produziram, se ainda são fecundas ou se, pelo contrário, secaram de vez. O intuito final dos dois dias será produzir uma colectânea com as contribuições dos oradores e de outros autores: uma fonte para os apaixonados de pensamento politico e principalmente um instrumento de orientação para jovens investigadores que se queiram debruçar sobre estes temas.

2. O que distingue actualmente uma pessoa de Direita?

Pergunta de um milhão de dólares! Digo já que não vou responder à tua pergunta, mas aproveito para fazer algumas considerações.
Não posso responder porque, em primeiro lugar, não existe “uma pessoa de direita” visto não existir “uma direita” mas “muitas direitas”. Faço-te apenas quatro exemplos retirados da actualidade para sublinhar a impossibilidade de definir de forma unívoca “uma pessoa de direita”.
Em relação ao Estado, há direitas que apelam à centralidade do Estado entendido como comunidade politicamente organizada, mas há também direitas que advogam o Estado mínimo em nome da defesa e primazia do indivíduo face à comunidade.
Em relação à cidadania, há direitas que defendem uma visão contratualista da sociedade e portanto a inclusão nela de todos os que trabalhem, paguem os impostos e respeitem as leis. Mas há também direitas que reclamam (consciente ou inconscientemente) uma visão imperial (não confundir com “imperialista”) e entendem que a nação é uma comunidade de destino na qual se devem poder integrar todos os que acreditam e se comprometem neste caminho comum independentemente das suas origens. Há finalmente direitas que consideram esta comunidade exclusiva dos que partilham determinadas origens étnicas e culturais e portanto excludentes dos elementos alógenos nos seus direitos de cidadania.
Em relação aos chamados “direitos civis”, há direitas que defendem o princípio da laicidade e do respeito e reconhecimento legal da livre escolha do indivíduo em matérias sensíveis como a orientação sexual e a bioética; e há direitas que, em defesa deste mesmo princípio de laicidade, apelam à restrição de comportamentos individuais que consideram ostensivos e ofensivos da mesma laicidade, como por exemplo certos hábitos religiosos. Há finalmente direitas que julgam certas expressões de laicismo como extremistas e atentatórias dos costumes, tradições, valores dominantes da comunidade, apelando, por exemplo, à defesa do modelo de família tradicional e ao direito à vida.
Em relação à geopolítica, há direitas que se sentem parte integrante de um modelo (o Ocidental) caracterizado por uma estrutura económica (liberal-capitalista) e por um sistema político (democracia) bem determinado, representado pelo eixo Estados Unidos–Europa-Israel, mas há também direitas que consideram o Ocidente não uma pátria comum ameaçada, mas sim uma área de dominação político-económico-militar norte-americana em fase de expansão contínua em detrimento de outros povos e civilizações (inclusive a europeia).
À luz destas rápidas considerações (muitas outras poderiam ser feitas), torna-se mais fácil perceber a impossibilidade de definir o que distingue actualmente uma pessoa de direita. Pode-se dizer que uma pessoa é de direita quando apresenta um pendor estatalista, anti-ocidentalista, integracionista. Mas também quando apresenta um cariz liberista, ocidentalista, laicista e assimilacionista. E também quando se demonstra anti-europeista, “welfare-chauvinist” e tradicionalista. Enfim, podemos teorizar (e encontrar na realidade do dia a dia) qualquer mistura destes “ismos”; misturas que afastam algumas “direitas” de outras “direitas” ao passo que as aproximam desta ou daquelas “esquerdas”. Por esta razão, o exercício melhor não é perguntar a uma pessoa “você é de direita?”, mas sim “você o que acha acerca de…?”. Exercício que, diga-se de passagem, ajuda a evitar companhias indesejadas e assumidas apressadamente em nome apenas de etiquetas banalizadoras.

3. Existe realmente uma Direita em Portugal? Depois de 1974 passou a ser quase um crime ser de Direita e mesmo no hemiciclo o partido que se senta mais à direita diz pertencer ao Centro.

Atenção: também o Estado Novo nunca se definiu um regime de direita, pois achava perigoso e anti-nacional oficializar uma dicotomia que acabaria por dividir a unidade orgânica da nação que o regime tanto prezava. Certa hipocrisia da linguagem política é transversal a todos os regimes, qualquer seja a sua orientação e tipologia.
Em relação ao pós-25 de Abril, estava mesmo a comentar alguns dias atrás com um colega como seja engraçado o facto que todos os partidos portugueses à direita do espectro político tiveram a necessidade de incluir a denominação “democrático” no seu nome: Partido Social Democrata, Centro Democrático Português ao passo que nenhum partido de esquerda teve que fazer isso apesar de 2 em 3 (BE e PCP) estarem abertamente contra o modelo de “democracia ocidental” em vigor praticamente desde a fundação do regime democrático português. Há, como é óbvio, razões históricas sobejamente conhecidas que explicam este fenómeno, que, para além disso, não é uma exclusiva da relativamente jovem democracia portuguesa. A história da direita parlamentar do meu país (Itália) é feita de 50 anos de fuga ao rótulo “de direita” por parte das suas expressões moderadas (Partito Liberale) e de utilizo do termo “direita” por parte do partido herdeiro do Fascismo (Movimento Sociale Italiano) principalmente para evitar o rótulo oficial de “fascista”. Mais, o MSI, após ter representado por 50 anos, ininterruptamente e no parlamento, 2 milhões (4%) de eleitores fascistas, acabou com definir-se anti-fascista uma vez alcançado o poder em meados dos anos 90. Se é compreensível abandonar o rótulo de “fascista” uma vez que se passa a representar já não 4% mas 13% do eleitorado, definir-se “anti-fascista” apesar da própria história é pelo menos de mau gosto.
Esta comparação Itália-Portugal serve para sublinhar que organismos como os partidos, supostamente representantes máximos das liberdades políticas dos cidadãos, estejam há décadas reféns de condicionalismos históricos e de “ditaduras intelectuais” do politicamente correcto, contribuindo assim a desvirtuar aqueles mesmos princípios básicos que afirmam defender.
Felizmente a história das ideias (enfoque da conferência de 29-30 de Novembro) deve preocupar-se em descrever e explicar estes fenómenos sem procurar nenhum consenso eleitoral, razão pela qual posso deixar estas pruderie terminológicas aos competidores eleitorais.
Dito isto, a conferência não tem nenhum objectivo de legitimação do termo “direita”, pelo menos nas intenções do seu organizador…ou seja, eu. Francamente, do ponto de vista das ideias, nunca consegui raciocinar em termos de “legitimidade” ou “ilegitimidade”. Por outro lado, do ponto de vista da acção política, a legitimidade não a considero uma dádiva, mas uma conquista.

4. As diferenças entre Esquerda e Direita tenderão a diluir-se no futuro?

Depende do que entendem por “Esquerda” e “Direita”. Se falam dos partidos mainstream, sem dúvida as diferenças vão diluindo-se. Este é um processo já em curso há algumas décadas e acompanhou a agonia das ideologias. Para além disso, hoje em dia os decisores políticos nacionais estão cada vez mais dependentes de condicionalismos supranacionais de diferentes níveis (desde a União Europeia, à Aliança Atlântica, à ONU, etc.) em quase todas as áreas antigamente exclusivas da soberania nacional. Por essa razão os partidos que pretendam realisticamente aceder ao poder sabem a partida que têm que acatar com princípios, perspectivas, regras, normas, compartilhadas nestes patamares supranacionais. E fazem-no sem grandes dificuldades. São socializados politicamente nestes princípios e, nos cada vez mais raros casos em que não acedam à “alta política” já compartilhando estes princípios, a aproximação às esferas do poder habitua-os rapidamente a este esbatimento das diferenças.
Não se trata todavia de uma inevitabilidade finalística. Felizmente com o sistema demo-liberal não chegámos ao fim da história nem ao melhor dos mundos possíveis, razão pela qual o homem continuará a elaborar ideias políticas e a sonhar e realizar sistemas de convivência. Estas elaborações e realizações vivem amiúde acelerações repentinas devidas a momentos de crise ou oportunidades inesperadas, o que me leva a pensar que poder-se-ão criar novas dicotomias ou, melhor, novos cenários plurais refractários à convergência “catch-all” que caracteriza os nossos dias. Estes novos cenários possivelmente não se desenharão nas antigas dicotomias direita/esquerda, mas em novas sínteses, contaminações, encontros, definições: a história está cheia destas nascenças.

5. Há futuro para a Direita em Portugal?

Esta já não é pergunta da 1 milhão de dólares mas de cartomante de feira. Estou a brincar e aceito o vosso desafio. Bom, depende a que futuro e a que direita se referem. Se falam das direitas (centro) parlamentares nada leva a crer que nos próximos anos deixem de alimentar a alternância bipartidária de governo, consolidada em Portugal desde o 25 de Abril. Se se referem às direitas extra-parlamentares – partidos ou movimentos, liberais ou radicais – nada leva a crer que possam sair da marginalidade na qual sobrevivem desde a sua fundação. Se se referem às direitas intelectuais (em todas as suas vertentes) nada leva a crer que estejam, não digo empenhadas, mas nem sequer interessadas em experimentar novas sínteses nem em jogar batalhas culturais de uma qualquer envergadura. Limitam-se e limitar-se-ão a reproduzir ideias de respeitáveis mas antigas (ou velhas?) direitas sem desafiar substancialmente o status quo das ideias já há muito estabelecidas. Para parafrasear Nietzsche, não me parece que nas direitas haja muito caos interior que permita predizer o parir de uma estrela que dança. Mas, como disse antes, a história sofre acelerações repentinas geradoras de caos e estrelas. Até lá, deixo-vos a vós julgar se e quão radioso será o futuro da direita em Portugal: cada um com os seus gostos.

6. Muito obrigado pela entrevista e boa sorte na organização do seminário. Queres deixar alguma mensagem final?

Nenhuma “mensagem final”. Só um “convite inicial”: quem puder apareça nos dias 29 e 30 de Novembro. O debate animado pelo público é o que valoriza os resultados das conferências, principalmente em temas onde há ainda muito trabalho para fazer. E obrigado pela entrevista.

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