John Andrade [16-08-2010] - I

John Andrade - autor, entre outras obras, do Dicionário do 25 de Abril - enviou-me este interessante testemunho sobre Coimbra na crise académica de 1969. Publico-o com todo o gosto e espero que este nosso contacto possa tornar-se cada vez mais produtivo em termos de investigação histórica.

Comprei hoje o seu livro Império, Nação, Revolução, que li com muita atenção, por ter vivido a Crise de 69 na Universidade de Coimbra, altura em que coleccionei quantos prospectos encontrei e tirei notas abundantes.

Só me posso pronunciar sobre a parte que diz respeito a Coimbra, e cuja leitura, aliás, me agradou imenso. Mas haveria alguns reparos a fazer. Dois exemplos: na p. 289, seria útil acrescentar que o Comité de Caça aos Comunistas foi criado em Lisboa, onde actuou sobretudo, estendendo-se mais tarde a Coimbra, onde se aliou à ANSA; e na p. 359, confirmo que as folhas intituladas Crónica de uma Vaca Espanhola eram realmente produzidas pela ANSA. Ao que parece, a ANSA começou como um simples projecto de guerra psicológica, mas depressa ganhou vida própria. Creio que teve realmente um papel decisivo na demissão do Gouveia Monteiro. E sabe que tinha contactos com certos movimentos europeus, como a CEDADE em Espanha, e com individualidades como Giorgio Almirante. Outro pormenor: creio que não utilizou as actas do Senado Universitário e dos Conselhos das Faculdades, que têm dados importantes sobre a génese e evolução da Crise de 69. E não mencionou, por exemplo, a filiação confirmada do Reitor Gouveia Monteiro no PCP, nem o José Barros Moura, controleiro do mesmo partido, nem a grande oposição das direitas revolucionárias a José Miguel Júdice, acusado de ser "burguês" e de ter a preocupação de não desagradar ao regime de Marcello Caetano. A razão principal para os ataques dos nacionalistas revolucionários ao Júdice era esta: não confiavam nele. Acusavam-no mesmo de colaborar com as autoridades na perseguição à ANSA, FRA, CCC, etc. – entre outras razões porque ele chegou um dia a dizer, na Cidadela, que "aqueles extremistas só nos causam problemas".

Não fala, no seu livro, da constituição de um Conselho de Veteranos paralelo, que chegou a emitir alguns Decretos. Dizia-se na altura, mas creio que sem fundamento, que o Dux Veteranorum à frente deste Conselho era o veterano de Direito Luís Miranda Pereira, que depois foi Director Geral dos Serviços Prisionais, já em plena democracia.

Embora se refira a agressões a raparigas universitárias e ao facto de o Movimento Estudantil (ME) negar a sua responsabilidade, esqueceu-se de mencionar que foram estas agressões que levaram ao desmantelamento do ME. Eu explico: por ordem directa de Marcello Caetano, a PIDE estava impedida de actuar contra os militantes do ME, que só podiam ser detidos pela PSP, em casos de violação da ordem pública ou delitos menores, ou pela Polícia Judiciária (PJ), em casos de matéria criminal. Ora aconteceu que uma das universitárias agredidas em suas casas era uma filha do Inspector Tinoco, da PIDE, que tomou o assunto nas suas mãos e colaborou com a PJ na identificação e captura dos militantes do ME responsáveis. A partir deste momento, a repressão da PJ passou a ser um facto, aliás contra a vontade de Marcello Caetano, e o ME, que até então tinha gozado de bastante impunidade, viu-se muito limitado nas suas actividades. Quando o Reitor Gouveia Monteiro se demitiu e foi substituído pelo Prof. Doutor Cotelo Neiva, o ME estava pràticamente desactivado, e até ao 25 de Abril nunca mais causou problemas.

Quanto ao Reitor Gouveia Monteiro, já tinha tentado demitir-se antes do incidente do Teatro Gil Vicente, mas o seu pedido foi indeferido pelo Ministro da Educação, Veiga Simão (que, como ele próprio veio a confessar, estava no Governo de Marcello Caetano para o minar por dentro). A sua demissão foi finalmente aceite, não por causa do incidente acima referido, mas pela crescente oposição dos professores e Directores das Faculdades à sua actuação, e também por estar à beira de uma crise de nervos.

1 comentário:

  1. Aqui está um bom exemplo das surpresas que a investigação (e o despertar da memória histórica) nos podem trazer.
    Eu não conhecia esta faceta passada do Dr. Luís Miranda Pereira, que efectivamente foi Director Geral dos Serviços Prisionais há uns anos.
    Já agora acrescento que ele actualmente está reformado, e dirige uma casa de turismo de habitação em Macedo de Cavaleiros (é uma casa de família).
    Quem passar por Trás-os-Montes poderá ficar na unidade hoteleira e pedir-lhe um depoimento sobre as suas recordações de Coimbra...
    http://www.morgado-oliveira.com/

    ResponderEliminar